16 de janeiro de 2006

Eu sei mas não devia


Às vezes eu fico pensando, pensando...
Queria escrever, descrever ou explicar às pessoas o que eu penso e acredito; só que eu fico muito confusa com as palavras e nem eu mesma entendo o que eu escrevo, às vezes. Gosto muito de ler, leio tudo que chega ao meu alcance: jornal, revista, internet, panfleto de propaganda e até bula de remédio. Acho que adquiri este hábito por estar sempre buscando respostas para as perguntas que eu fazia e as pessoas não podiam me responder. Tenho uma curiosidade sem limites e até já tive problemas por causa disto. Nesta semana eu estava por aí lendo e encontrei um texto que achei muito interessante, só mesmo uma poetisa como Clarice Lispector para conseguir expressar um sentimento comum a tantas pessoas. Gostaria muito de dizer outras coisas hoje; mas me identifiquei muito com essas palavras...

EU SEI, MAS NÃO DEVIA
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Clarice Lispector

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